
Aonde quer que estejas, fica bem.
Vais estranhar que passados tantos anos me lembre hoje de ti. Há dias assim ... mas também nunca me esqueci, verdadeiramente.
E lembrei-me de ti por uma coisa fútil e sem lastro: fui a um café, sentei-me, pedi a cervejinha da ordem e, quando dei por mim, estava à procura do isqueiro e do tabaco para me sossegarem na solidão da mesa.
Está a chover. Os dias em Leiria, nesta altura de chuva, ficam esquisitos e acabrunhados. Fica tudo muito cinzento e húmido. Até os olhos... quando começamos a olhar para as vidraças embaciadas e percebemos a passagem de algum carro no rasgar da estrada molhada...
O café está vazio. O dono - tão só quanto eu - tenta, devagarinho, meter conversa... O tempo, os acidentes, a BT, a carestia da vida... e o "encore" final: o tabaco.
O tabaco. Essa praga que lhe fazia mal à saúde - dizia sem convicção - mas que lhe fazia bem à caixa registadora e ao ambiente de tertúlia que lhe animava as tardes, principalmente as de chuva, como esta.
Agora - queixava-se - lá aparecia uma velhota de vez em quando a beber um chá de limão, um casal ou outro a beberem a bica e a "estudarem" os jornais e um ou outro errante como eu a abrigar-se da solidão dos pingos da chuva ou do cinzento das gentes. Até o ar do café, rematava ele, estava frio... e só com o aquecedor a coisa ficava aconchegada.
Porca de vida!.. Porca de vida! - assim rematou o último alento de conversa.
A pensar no cigarro deixei que a memória se soltasse... e é aí que apareces tu, Rui.
Recuei ao tempo em que o Karate era a tua razão de vida. Ao tempo em que querias que também fosse a minha. Ao tempo dos bailaricos e dos conjuntos... Ao tempo em que foste para o Japão para estágio, a lavar pratos, para pagares a permanência penosa que te havia de preencher a largura e a cor do cinturão, na incessante procura do Dan que te preenchesse o sonho... O teu sonho. A tua vida.
Para quê, Rui?
Recordei as nossas correrias no Monsanto, os treinos de endurecimento, o ar que nos enchia os pulmões, os meu cigarros inseparáveis e a tua cumplicidade contida que acabava sempre numa ou outra passa... Dizias que não era bom mas também fazia falta uma passa de longe a longe... para criar defesas! Nunca me esqueço dessas tuas palavras...
"Temos de criar defesas"... Não podemos prescindir das agressões - mesmo as do tabaco - porque são elas que nos vão imunizando, dizias tu na tua sapiência de 19 anos de estrada e de muita dureza...
E nessa ânsia de vida e sonho, foste-te privando de um pouco de tudo o que me ia preenchendo: os copos, os cigarros, as noitadas e aqueles comeres sem jeito que tu olhavas com contida vontade...
Um dia partiste... Uma doença ceifava-te na vida, inapelavelmente! Um homem que tudo fizera para dar vida à vida, caía no tapete sem que lhe fosse explicado o porquê... sem que alguém pudesse mandar a toalha para o ringue e parasse aquele equívoco.
Tantas privações, tantos cuidados, tanta vitalidade, tanta luta, tantos sonhos e... numa volta do destino, a coisa porque mais lutaste - a saúde - rasteirou-te cobarde e traiçoeiramente, sem apelo.
De costas... De frente, eras complicado de vencer.
Deixaste amigos e saudades... há já 39 anos! Ao Carlos, ao Filipe, a mim... A tanta gente que via em ti o mestre, o amigo e o companheiro que não quebrava.
Voltaste hoje a visitar-me, nesta tarde de chuva parva a sugerir um proibitivo cigarro para me defender das traições da vida e dos fundamentalismos inúteis e frágeis...
Não te vás já, Rui... Aguenta aí!
É só pagar a cerveja, deixar o zombie do balcão entregue às velhas do carioca de limão e aos devoradores de páginas de necrologia, sair para a rua e dar aquela passa partilhada: para nos defendermos, como tu bem dizias.
Só para nos defendermos de tudo: da chuva, do cinismo, da moral pífia e postura beata que vai grassando ... e até da morte anunciada.
Vai aparecendo... sempre. Um dia já não precisarei de te convidar, apareço eu.
Até lá...
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