quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Imperdoáveis ausências


Aonde quer que estejas, fica bem.

Vais estranhar que passados tantos anos me lembre hoje de ti. Há dias assim ... mas também nunca me esqueci, verdadeiramente.
E lembrei-me de ti por uma coisa fútil e sem lastro: fui a um café, sentei-me, pedi a cervejinha da ordem e, quando dei por mim, estava à procura do isqueiro e do tabaco para me sossegarem na solidão da mesa.

Está a chover. Os dias em Leiria, nesta altura de chuva, ficam esquisitos e acabrunhados. Fica tudo muito cinzento e húmido. Até os olhos... quando começamos a olhar para as vidraças embaciadas e percebemos a passagem de algum carro no rasgar da estrada molhada...
O café está vazio. O dono - tão só quanto eu - tenta, devagarinho, meter conversa... O tempo, os acidentes, a BT, a carestia da vida... e o "encore" final: o tabaco.
O tabaco. Essa praga que lhe fazia mal à saúde - dizia sem convicção - mas que lhe fazia bem à caixa registadora e ao ambiente de tertúlia que lhe animava as tardes, principalmente as de chuva, como esta.
Agora - queixava-se - lá aparecia uma velhota de vez em quando a beber um chá de limão, um casal ou outro a beberem a bica e a "estudarem" os jornais e um ou outro errante como eu a abrigar-se da solidão dos pingos da chuva ou do cinzento das gentes. Até o ar do café, rematava ele, estava frio... e só com o aquecedor a coisa ficava aconchegada.
Porca de vida!.. Porca de vida! - assim rematou o último alento de conversa.

A pensar no cigarro deixei que a memória se soltasse... e é aí que apareces tu, Rui.

Recuei ao tempo em que o Karate era a tua razão de vida. Ao tempo em que querias que também fosse a minha. Ao tempo dos bailaricos e dos conjuntos... Ao tempo em que foste para o Japão para estágio, a lavar pratos, para pagares a permanência penosa que te havia de preencher a largura e a cor do cinturão, na incessante procura do Dan que te preenchesse o sonho... O teu sonho. A tua vida.
Para quê, Rui?
Recordei as nossas correrias no Monsanto, os treinos de endurecimento, o ar que nos enchia os pulmões, os meu cigarros inseparáveis e a tua cumplicidade contida que acabava sempre numa ou outra passa... Dizias que não era bom mas também fazia falta uma passa de longe a longe... para criar defesas! Nunca me esqueço dessas tuas palavras...

"Temos de criar defesas"... Não podemos prescindir das agressões - mesmo as do tabaco - porque são elas que nos vão imunizando, dizias tu na tua sapiência de 19 anos de estrada e de muita dureza...

E nessa ânsia de vida e sonho, foste-te privando de um pouco de tudo o que me ia preenchendo: os copos, os cigarros, as noitadas e aqueles comeres sem jeito que tu olhavas com contida vontade...

Um dia partiste... Uma doença ceifava-te na vida, inapelavelmente! Um homem que tudo fizera para dar vida à vida, caía no tapete sem que lhe fosse explicado o porquê... sem que alguém pudesse mandar a toalha para o ringue e parasse aquele equívoco.
Tantas privações, tantos cuidados, tanta vitalidade, tanta luta, tantos sonhos e... numa volta do destino, a coisa porque mais lutaste - a saúde - rasteirou-te cobarde e traiçoeiramente, sem apelo.
De costas... De frente, eras complicado de vencer.

Deixaste amigos e saudades... há já 39 anos! Ao Carlos, ao Filipe, a mim... A tanta gente que via em ti o mestre, o amigo e o companheiro que não quebrava.

Voltaste hoje a visitar-me, nesta tarde de chuva parva a sugerir um proibitivo cigarro para me defender das traições da vida e dos fundamentalismos inúteis e frágeis...

Não te vás já, Rui... Aguenta aí!
É só pagar a cerveja, deixar o zombie do balcão entregue às velhas do carioca de limão e aos devoradores de páginas de necrologia, sair para a rua e dar aquela passa partilhada: para nos defendermos, como tu bem dizias.
Só para nos defendermos de tudo: da chuva, do cinismo, da moral pífia e postura beata que vai grassando ... e até da morte anunciada.

Vai aparecendo... sempre. Um dia já não precisarei de te convidar, apareço eu.
Até lá...
Texto:©José Tereso/Imagem: sxc.hu

Sem comentários: