terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Uma menoridade inconveniente











Por alturas da Feira de Maio, em Leiria, visitei uma tenda detida por uma Associação Regional de Protecção e Acolhimento de Animais Abandonados.
Visitei-a por duas ou três vezes, durante o mês, e em qualquer delas demorei-me a observar visitantes e visitados e o modo como se relacionavam com os observados (cães e gatos).
Sensibilizou-me o particular carinho e cuidado de duas ou três representantes da Associação que ali estavam em tarefa de aconselhamento para os potenciais interessados em adoptar "abandonados". Em curtos diálogos tentei, também eu, perceber o que leva uma pessoa, anónima e graciosamente, a prescindir de algumas horas por semana para se dedicar à recolha, tratamento e protecção de infelizes gatos e cães que, a toda a hora, são largados à rua por, não menos infelizes, donos.
Tarefa nobre e que merecia um pouco mais de atenção e incentivo por parte da sociedade civil e das autarquias.

Tenho pelo animais, na justa proporção, o mesmo posicionamento que tenho com os meus iguais. E se os sem abrigo me merecem particular reflexão e atenção, também aos animais abandonados não regateio o tempo que possa perder a reflectir e a protegê-los.
É o abandono que me toca, não o abandonado.

Durante as visitas que fiz, tive oportunidade de assistir à adopção de alguns dos animais que estavam em exposição. Na maioria das vezes em que isso ocorreu, apeteceu-me incarnar o papel de Provedor do adoptado e impedir a consumação da adopção.
A adopção, só se concebe de uma maneira: responsavelmente.
De outra forma, tudo não passa de satisfazer caprichos de puto, frustrações de casais com crises de maturidade, tentativas de salvar relacionamentos mal preparados, exortar fantasmas de domésticas com crises de vocação ou, simplesmente, confiar ao animal a penosa tarefa de, por nós, aturar o malcriado do catraio, isto depois de o "anormalóide" já ter chagado a vida da avó...

Tenho pena de o dizer como digo, mas não me apetece ser "soft" nesta matéria.

É confrangedor assistir ao raciocínio de algumas pessoas nos momentos que antecedem a adopção de um animal abandonado. É confrangedor assistir aos diálogos que se travam entre os adultos e as crianças que se preparam para adoptar um animal abandonado.
É miserável a maneira como passados dias, às vezes no próprio dia, abandonam um animal a quem deram uma esperança de conforto.

Todos os dias me cruzo com animais abandonados. Também pessoas. E nestes encontros com desencontrados da vida não escapo, eu próprio, a um profundo mau estar e a uma incómoda passividade. Mas jamais brincaria com expectativas, sentimentos e falsos hrizontes.

Em tempos tive uma cadela que fui buscar à rua e a que, por se encontrar doente e com marcas no corpo que prenunciavam um mau fim, pouca gente "se chegava" a dar comer ou água. Levei-a para casa, lavei-a, tratei-a, mimei-a e assim viveu 13 anos em minha casa, recuperando,também na rua, o afecto e a popularidade que miúdos e graúdos lhe haviam, em tempos, negado. Morreu no sossego da minha casa, acompanhada por quem a acompanhou sempre, nos maus e nos bons momentos. Tal quadro havia de me impedir, até hoje, de voltar a repetir o gesto.
Egoisticamente, resguardo-me do sofrimento.

E isto para dizer que, se tivesse de adoptar um animal abandonado, não precisaria de nenhuma Feira de Maio para o fazer. A rua é, infelizmente, uma imensa Feira.
É uma questão cultural. Tão cultural e civilizacional quanto o é o Natal que convencionámos generosamente ser no dia 25 de Dezembro, data em que todos vamos às Feiras de Maio da nossa consciência e vertemos aquela lágrima de catálogo que reservamos para ocasiões especiais.
O que se passa nas Feiras de Maio com os animais, também se passa nas chamadas "petshops", onde o abandono " à consignação" tem "pedigree" e "Lop". A questão aí só varia porque se interpõe o dinheiro. No resto, nos restantes detalhes, somos muito parecidos e culturalmente muito pobres. E miseráveis, nalguns casos.

E escrevi estas linhas, onde me apetecia ser bem mais cáustico e definitivo nos nomes das coisas, porque li, na imprensa de Leiria, esta semana, que a Associação com que iniciei esta crónica, vem denunciar o abandono massivo de animais domésticos, sendo que muitos donos justificam o acto com a actual crise financeira. Outros, fiquei a saber, só não o fazem porque, sendo o animal "chipado", daí resultaria a sua identificação.

Somos assim: no anonimato somos sempre fortes, grandes, destemidos e "assumidos".

Outras razões são invocadas mas de cariz tão baixo que me recuso a escrever e descrever detalhes. Basta a pequenez dos protagonistas. E o que é pequeno é, por si só, um mero e insignificante detalhe, nestes particulares casos.

Nunca os cães e os gatos imaginaram aonde podia chegar o longo braço do "subprime" americano ou o inqualificável egoísmo e miserabilismo da condição humana.
Esperemos que a crise passe, que o petróleo e a Euribor desçam e que, misericordiosamente, alguns de nós cresçam ou aproveitem para ganhar espinha dorsal ou calcifiquem a cartilagem que lhes sustenta a irresponsabilidade e a menoridade boçal.

É urgente... porque com esta "cultura" não vamos seguramente a lado nenhum, nem nunca ninguém nos tomará a sério...
Porque não o somos.
Texto:©José Tereso / Imagem:rpalmela.blogspot.com

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