segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Relatório de Piquete - II




1. INSTALAÇÕES (Continuação)

c) Abismado e mal refeito com as manifestações culturais dos vitrais, depressa passei ao extâse quando, num breve passeio de olhos, reparei que nos 4 cantos da sala de espera - pegada ao ól e à porta de entrada - pendiam, num suave balançar, 4 estrondosas teias de aranha que, a atentar no rendilhado geometricamente complexo e no diâmetro já razoável, por ali deviam permanecer há muito, muito tempo.


Os descobridores portugueses nos 4 cantos do Mundo e a as aranhas nabantinas nos 4 cantos do Piquete. Era uma imagem histórica e carregada de simbolismos...

Qual desleixo, qual porra! Aquilo era místico.

Ali estavam aqueles rendilhados a lembrar aos mais insensíveis o quanto o tempo, a distracção da vassoura e o engenho de um aracnídeo, permitem. A partir de determinada altura, é arte. E a arte não se destrói.
História... isto é história, é amor à terra que nos viu nascer... é criar raízes, nem que seja no piquete. É ficar... enquanto outros se vão.
Não eram já teias de aranha: eram ateliers de filigrana e joalharia.


A ornamentá-las, as respectivas obreiras: 4 vistosas aranhas, de idade já avançada, a julgar pelo tamanho das patas. Pelo rendilhado pendiam ainda restos mortais de outros bichinhos mais incautos ou clandestinos que, na febre da emigração, acabaram por se meter onde não eram chamados. E lá estavam, naquele parque temático, restos de mosca, de mosquito, de moscardo, de melga e traça. Um iniciático museu de história natural ou uma exposição sobre desastres aeronáuticos, onde o insecto voador - atrevido ou pouco lesto - era o tema.


Procurei pelas as paredes - em vão - uma placa que assinalasse encontrar-me nalguma Reserva Natural ou nalgum Parque Temático. Mas não... aparentemente, as aranhas tinham-se ali instalado ao abrigo de algum Acórdão de Repovoamento ou de alguma deliberação camarária e isto porque não era verosímil que tivessem escapado à fúria das limpezas ou má manipulação de um cabo de vassoura.
Aquilo só podia estar autorizado. E das duas uma: ou os funcionários que ali trabalhavam eram todas da protectora dos animais ou então a Câmara tinha cedido, ad aeternum, o espaço a tudo o que era bicheza, ao abrigo de uma qualquer birrinha e capricho da Europa Comunitária.
E achei bem... até porque o lince ibérico não é mais importante que a pulga nabantina ou a aranha templária. Se é para proteger a bicharada... e se uns são filhos da mãe, os outros não podem ser filhos da pulga!.


Nem eu, nem a Zabel, nos atrevemos a perturbar aquele equilíbrio ecológico e, se já lá estavam, ali deveriam perpetuar as gerações vindouras... No fundo, aquilo até dava um toque surrealista às instalações, podendo sempre vir a ter interesse para o estudo da evolução das espécies. E as melgas, mesmo as caídas em desgraça nas teias que o tempo tece, há muito pedem que a gente se debruce, seriamente, sobre o seu caso.

d) Passei da emoção a um copioso e genuíno pranto de alegria quando verifiquei que as paredes que sustentavam a estrutura das teias de aranha apresentavam uma cor mate amarelada com nuances e "madeixas". Para ser mais preciso e técnico: um badalhoco-mate-texturado com veios de branco.
E que vida dava aquela cor ao ól... Que sensibilidade e bom gosto ali estava plasmado. Aquilo não eram paredes pintadas a trincha e rolo; aquilo eram divagações pictóricas, saídas das mãos de diversos mestres e de diferentes sensibilidades...
Aquilo era a história da pintura e do design gráfico através dos tempos: desde a antiga Monarquia até à actual Rebaldaria.
Por momentos assaltou-me a ideia de poder entrar por ali dentro um pato bravo ou um pintor de biscate, empunhando uma trincha ou pincel de pelos serrados e desatar a pintar as paredes com aquelas cores de catálogo, sempre uniformes e cansativas. Tipo... "homem da Barbot", a exemplo do emproado "homem da Regisconta".
É que lá se iam as dedadas, as palmares, restos de gelado e resquícios fossilizados de macacos do nariz que, aqui e ali, davam um toque impressionista e efeito de "alto relevo" ao emparedado do ól.
Tanta gente, anónima e artisticamente deu o seu contributo para aquele resultado. Tanto miúdo ali rubricou o seu génio... (gente que tardiamente descobriu que a água - esse bem precioso - também serve para lavar as mãos e as fossas nasais). Gente que, sem frequentar as Belas Artes, ali deixou motivos de estudo e de reflexão sobre os caminhos da pintura e que confrontam os mestres com a verdade suprema: também da caca se faz arte.
Não... Também aquilo era de preservar.

Também aquilo era arte: rupestre, equestre, barroca ou, simplesmente, badalhoca.

Que importa... Era arte, e a arte nem sempre é bem compreendida. Nem toda a gentinha tem cultura para perceber a arte... E ali havia-a, segura e abadalhocadamente.
Como é que alguém poderia pensar em destruir aquele amarelo torrado com aqueles floreados artísticos com um bocado de lixívia, um pano molhado... ou mesmo uma trincha.
Só por inveja ou heresia...

(continua)

Texto:©José Tereso / Imagem:afaceesp.org.br

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