quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Relatório de Piquete - I












Aos vinte e nove dias do mês de Julho de 1995 D.C., por cerca das 08H30 TMPC (Tempo Médio de Palhavã de Cima), eu, funcionário subalterno Zé, bem acolitado pela minha colega e igualmente subalterna do género feminino, Zabel Espanhola, deslocámo-nos para a Alameda Um do Terceiro Mês do Ano, onde, no número e vinte e noves fora nada, piso térreo, nos apresentámos devidamente uniformizados para tomarmos conta do piquete da Fábrica.


Assim que cheguei ao ól (hall é outra coisa) de entrada, o funcionário menos subalterno, Sr, Xico Canseira disse-me com aquele ar de algodão doce que só ele consegue fazer:

- Não tenho nada pendurado!

Eu já ia para ali sem muita coisa, até vontade, mas fiquei, perante aquela tirada, sem outra coisa: palavras!
Passado o impacto...acreditei!
- Se ele o diz é porque é verdade... Mesmo assim, com o incómodo, ainda levei a mão ao fecho éclair para confirmar se eu estava na mesma condição...
Não, ainda não... 24 horas depois, logo se veria!

Depois do Xico Canseira sair da situação de funcionário, mais ou menos subalterno, e regressar à situação de pessoa normal, fiz eu o percurso inverso... e deixei de ser normal.
Eu e a Zabel.
Daquilo que observei nestas 24 horas, neste peculiar espaço, e por me cumprir informar, passo a contar tudo sem nada esconder.

Assim:

1. INSTALAÇÕES

a) Constatei com particular alegria e agrado que o vidro panorâmico e fosco que decora a parede exterior do nosso edifício - e aquele que serve a montra deste serviço - permanece partido e com um buraco que, muito embora não tenha a fama e publicidade do congénere do ozono, é um buraco...
Já por alturas da Assinatura do Tratado de Tordesilhas, aquele mesmo buraco no vidro prometia um dia emoldurar um qualquer serviço público. Gerações passadas, arestas já limadas e a mesma vontade férrea de não ser substituído. Nem a Marinha Grande constituiu motivo para que, com a proximidade, a coisa se resolvesse por osmose. Mas nada... A excepção a confirmar a regra: há coisas de difícil substituição mas também as há, irremediavelmente, insubstituíveis.
Tal constatação só me pode trazer alegria porque vejo a preocupação de ser conservada a história do edifício. Não sei há quantos anos ali permanece aquele buraco no vidro mas a avaliar pelo fosco que apresenta não me admiraria que fizesse já parte do património cultural da cidade sendo impensável suprir, com uma merdice de um vidro novo, a história de um buraco. Foram gerações de templários, chefes e subalternos que deleitados o miraram com admiração e orgulho.
Poderá o buraco ter defeitos, não ser bonito, não ter pedigree... mas tem impresso nas arestas a garra e o génio de quem o partiu e não o mandou substituir. Há toda uma história na origem daquele vazio. E isso é bonito!
E sobretudo este buraco é nosso... e não da maralha como é o caso do buraco do ozono.
E nisto de buracos cada um faz os que quer... (mas depois não venham com ADN's e paternidades...)


b) Foi com redobrada emoção, e não conseguindo evitar um lágrima mais afoita, que reparei que o pó e a sujidade que protege os envidraçados das instalações, mantém a traça original. Muito embora o aspecto possa impelir o observador descuidado a tentar desentranhar a camada de pó, tal não deveria ocorrer.
E não ocorreu, até porque os gatafunhos e escritos cuidadosamente impressos no pó, pelos dedos criativos de todos quantos por ali foram passando, devem ser preservados. Vejam o que se passou em Foz Côa...
Também isto é arte... e a bonecada desenhada no pó dos vidros confere-lhes uma ambiência de vitral. É um estilo rocócó. A textura não deixa dúvidas, mesmo a leigos.
Emocionado com a manifestação artística, também eu humedeci a pontinha do indicador, com fragrâncias a nicotina, e lá deixei, para a posteridade, um bonequinho e um "amor de mãe" que tão bem ali ficou.
A Zabel Espanhola optou por um "Angola, 1966 - 3º Batalhão".
Resisti à tentação de apagar um "Lava-me, porco!". Achei mal o comentário mas não se apaga a história porque há quem diga que ela se repete... Apagar, para quê? Se mais tarde se perpetuarão os porcos e os escribas de vitral?!...
Ficou bonito. Fica bonito como está, porra!
(Continua)
Texto:©José Tereso / Imagem: afaceesp.org.br

1 comentário:

Anónimo disse...

Fico à espera do "continua" e aposto cu Xico, lá do meio do mar, também...
:))