segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Do porquê...

...Recordou companheiros e lobos.
Por momentos pegou no telemóvel e lá estavam velhos companheiros.
Nenhum lobo.
Os lobos não telefonam e pouco falam, tinha-se já esquecido.
...Cruzam-se, apenas.
E olham-se.
Fica tudo, solidariamente, dito...













Olhou pela última vez a secretária como se quisesse confirmar que tudo estava arrumado e que ali, também, deixava arrumada a vida. Vinte sete anos de vida.
Ajeitou o candeeiro, certificou-se que acendia, meteu as chaves no armário e nas gavetas, não sem antes ter confirmado que todas elas fechavam o vazio que alguém um dia destes iria abrir e guardar, talvez, outros vinte sete, ou mais, anos de vida.
Apagou a luz do candeeiro, levantou-se, arrumou a cadeira na perpendicular da secretária, ajeitou o tapete e fez-se ao interruptor da sala vazia.
Um último olhar ao espaço e fez-se escuro. Fez-se vazio.

Com passo lento e estudado - pensado durante muitos anos - desceu a escada do edifício, passou pelo piquete e, para esconder o embargo da voz, disse:
- Boa noite e bom serviço!...
Nem esperou pela resposta que se adivinhava afundada no sofá frente às notícias, numa interminável contagem decrescente de horas e minutos, só interrompida por medos, aflições e ansiedades.
Assim o pensara, assim o fez.

Saiu para a rua, meteu-se no carro e encaminhou-se para o "Sem Niveau" para se degladiar com uma cerveja fresquinha.

Muitas vezes ali estivera - no "Sem Niveau" -, na mesa dos fundos, com pouca luz, à volta de uma cerveja, a ouvir os acordes de um jazz ambiental e a lamber as personagens que iam entrando. Várias vezes, nesses princípios solitários de noite, experimentou exercícios desgastantes, de ler nos lábios as conversas semi-cerradas dos presentes e os silêncios contidos dos ausentes.
Sempre só.
O hábito e a vida deixaram-no só. E ele acomodara-se.
E mesmo naquele que era o último dia, permanecia, como no primeiro dia, só. Ele sabia que essa era a factura que haveria de ser cobrada, um dia.
Sem festejos, sem despedidas, sem discursos e sem placas evocativas do que quer que fosse.
Nos desenhos da espuma da cerveja procurou em vão o prenúncio do futuro. Só passado ali se lia...

E saltaram-lhe para a mesa as memórias geográficas da viagem: Loures, Gomes Freire, Oliveira de Azemeis, Bissau, Bubaque, Vladivostok, Pontevedra, Portimão, Faro, Porto, Tomar e Leiria.
E em cada paragem, um gole. E em cada gole, o filme da vida, em off , num technicolor sem rugidos de leão.
Vinte sete anos estavam ali na mesa, a serem despidos à velocidade de uma cerveja.

Recordou companheiros e lobos. Por momentos pegou no telemóvel e lá estavam velhos companheiros. Nenhum lobo. Os lobos não telefonam e pouco falam, tinha-se já esquecido.
Os guardadores de lobos... Bom! Esses, usam telemóveis para encomendar pizzas.
Só o tempo separa um lobo do seu guardador. E a viagem é grande, selectiva e silenciosa...
Os guardadores conhecem-se nos silêncios cifrados e prescindem de cumprimentos.
Cruzam-se, apenas.
E olham-se.
Fica tudo, solidariamente, dito.

Teria a vida toda - ou o resto de toda - para os procurar...
Já de saída, embalado por Norah Jones, decidiu-se: vou abrir um pub.
Subitamente veio-lhe à memória o Harry Anders do MI6 e a nostalgia de um Blue Ice com fragrâncias de jazz e odores a frias clandestinidades. Apenas uma mulher poderia aquecer aquela guerra... mas o fim era previsível: problemas.
Um retiro nostálgico: com esta luz, com este jazz, com estas cadeiras e com estes silêncios.
Os lobos hão-de aparecer e, atrás deles, os guardadores. Quem sabe mesmo se algum pastor, perdido e confundido nas luzes, não se refugiará na mesa dos fundos.
Sim, "Blue Ice". Melhor, "Blue Ice Underground Kaffé".
Fica assim.
Quando puder, abro.
Eles virão... do frio, talvez.
©J.Tereso

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