domingo, 28 de dezembro de 2008

Tardes, do dia, da noite, de Natal








Os anos passaram e nunca a venderam, a ele... injustamente.
Só o sonho lhe vendiam...
Muitos anos teriam de passar, mas eu sabia que tinha este encontro marcado.
Fui-me esquecendo no tempo para evitar faltar ao encontro dos ausentes mas, cá bem no fundo, eu sabia que um dia havia de voltar a calcorrear as mesmas ruas, a dobrar as mesmas esquinas e pasmar com os mesmos olhos...
Poderia demorar muito, mas nunca a eternidade... e eu sabia-o.
São 23H45, nesta noite fria e húmida, há 55 anos.
Disto 47 anos desta crónica.
A crónica que nunca escrevi por não ter assunto, mas que o tempo foi trazendo de mão beijada para que, só agora, a conseguisse escrever.
Deixem que vos guie nos percursos, deixem que vos interrompa os olhos com o silêncio das palavras e com o vazio das deixas... nesta peça que levo hoje à cena.
Vamos lá então...
A noite já vai longa... demasiado longa para os pequenos anseios e sonhos.
Talvez um carro... daqueles com luzes como o Action Man... ou o Homem Aranha, ou o dos bombeiros, ou... sei lá!
Tudo!
Como nas montras... onde há tudo!
Como na vida... onde há montras!
Atrevo-me pela Rua do Ouro... são 23H46!. Pouco ou nada se ouve.... só os meus passos e, lá longe, o barulho ronquento de um autocarro, também ele, provavelmente, surdo e vazio!
As calçadas estão estranhamente brilhantes... como se estivessem polidas e lavadas, com brilhos de azul, verde e encarnado... como, se elas próprias, tivessem decidido engalanar-se...
É mesmo noite de Natal...
- A noite mais bonita do ano... como me dizia o meu pai!
E da maneira como o dizia... eu acreditava.
E dessa maneira me deixei recuar... Ao tempo em que te ouvia e que te sentia.
Na tarde da noite mais bonita do ano, muitas vezes percorri estas mesmas ruas, calcorreei estas mesmas pedras... pela mão do meu pai – para não me perder no bulício das compras...
Eu não me perdia nesse bulício...
Nem ele.
Assistíamos só, de borla, ao espectáculo!. E cheio de luzes, montras coloridas, sorrisos apressados e olhares de ocasião regressava a casa, num autocarro – ronquento como o de há pouco – verde. A tarde do dia da noite de natal estava a cair.
No autocarro ia sempre muita gente, não tão colorida como a outra... As luzes, as montras coloridas, os sorrisos apressados e olhares de ocasião iam desaparecendo à medida que me aproximava de casa.
Na minha rua não havia isso... para ver isso tinha de ir à "baixa" (como dizia o meu pai).
E lá ia...
Sempre na tarde do dia da noite de Natal... com a mão bem agarrada para não me perder na dança das cores, das luzes e dos sorrisos apressados... porque a noite não tardava.
Rua Augusta, Rua do Ouro, Rua dos Fanqueiros, Restauradores, Praça da Figueira, Rossio... que imenso carrocel de gente, às voltas.
Era bonito... Era dourado.
O meu pai parava sempre na montra da Casa da Sorte... e olhava!. Às vezes muito tempo... Tanto tempo que me parecia envelhecer, perdido nos papéis numerados e coloridos.Gostava quando ele ia ver a montra... parecia diferente. E ainda bem não, lá vinha com aquela frase que os anos foram gastando:

- "Foi aqui que venderam a Taluda! A Sorte Grande!"...

Os anos passaram e nunca a venderam, a ele... injustamente. Só o sonho lhe vendiam...
E com esse sonho ficava diferente, tão diferente que chegava a comprar-me um cruzado de castanhas assadas a um homem que todos os anos eu via ali, sempre no mesmo sítio, sempre com as mesmas castanhas, sempre com os cartuchos feitos com papel da Páginas Amarelas... e aquelas castanhas eram, também, sempre boas...
Quentes e boas, era verdade. Era o meu prémio pelas demoras dele na montra dos sonhos.
Que mais se pode exigir para um fim de tarde, no dia da noite de Natal...
Luzes, sonhos e castanhas! Um cabaz de surpresas que se perpetuou nos anos, nos meus anos de miúdo - vestido a preceito para ver passar o Natal. Depois de olhar muito para aquela montra e murmurar coisas que eu nunca entendi, íamos para a paragem do 46 – Portas de Benfica...
Sempre agarrado pela mão áspera do meu pai, para que não me perdesse na aspereza das cores, das luzes e dos sorrisos apressados e já àsperos do cansaço.
E o regresso a casa... e à vida.
O quanto eu odeio aquele 46... que me roubava as tardes do dia da noite de Natal...
Depois...
Depois vinham as cuecas e as meias que eu estava a precisar, mais um casaquito (a manga ficava sempre curta), mais uns lápis de cor... para eu poder colorir as montras da minha rua na tarde do dia da noite de Natal do ano que havia de vir...
É meia noite e vinte... É a meia noite e vinte, das 55 vezes que o foi nesta noite!
Subo aos Restauradores, passo pela montra da Casa da Sorte... Com curiosidade dorida abrando o passo, carregando as ausências e os silêncios e não encontrando a mão áspera que me guardava das luzes, das cores e dos sorrisos apressados...
Demorei-me a olhar... e, por momentos, parecia-me engasgado com uma castanha mais sôfrega.
Mas não... a tarde do dia da noite de natal já fora há muito.
Há muitos sonhos, há muitas Taludas!
O ronco – agora com outra cor - do autocarro fez-se aos Restauradores...
Era o 46 para as Portas de Benfica. O ronco parecia-me igual mas não era...
A um súbito desejo, corri para a paragem e fiz sinal para deter o borrão multicolor. O chasso fez-se ao passeio, abriu a porta e esperou a minha entrada. Fiz o gesto de entrar.
Por momentos, ia deitando tudo a perder...
Mas não, no último instante, senti aquele puxão áspero que me travava as luzes, as cores, as montras... e recuei para o passeio.
Voltei-lhe as costas e livre da mão que outrora me prendia às cores, às luzes e aos sorrisos apressados, soltei-me pela noite da noite de Natal e perdi-me no silêncio das montras, das luzes, das cores, dos sorrisos ausentes e das ceias envoltas em cartão canelado.
E percebi, finalmente, que na noite da noite de Natal, na Baixa, não havia cuecas, nem meias, nem lápis de cor, nem casacos de inverno de manga curta...
Eram os carros de bombeiros, as pistolas de cowboy e carros da polícia com o pirilampo azul...
E outras coisas que não havia...
Que não havia. E que eu não sabia. Mas que agora... Agora, também já não importava saber. Agora já não lhe iriam vender a Taluda!
Vinguei-me do 46... que durante tantos anos me roubou as cores e as luzes da noite de Natal.
Já afastado e perdido nos reflexos de mil cores, pareceu-me ouvir uma voz áspera a soltar-me:
- Bom Natal, Zé!

- Também para si... onde quer que seja! Onde quer que haja!...

Texto: ©José Tereso

Imagem: susanagaspar.blogspot.com

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