sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Snipers e voyeurs das manhãs de domingo









Gosto das manhãs de domingo.
Gosto de me levantar cedo, de uma chuveirada meia arrepiada e sentida. Depois, à pressa e antes que acorde completamente, precipitar-me para as bombas da Total, comprar o jornal e passear-me nas "gordas" enquanto me inundo e mergulho num cigarro e na bica quente...

Isto é viver outra vez...

Encosto-me à mesa de pé alto, vou sorvendo o cigarro, falando com a bica, atalhando a leitura e deixar que a manhã vá nascendo devagar, em bicos de pés... para não acordar a 2ª Feira.
Gosto de estar aqui uns momentos e ver a cidade a acordar...
Estar aqui como um voyeur, fingindo ler, fingindo acordar e deixar que a bica e o cigarro vão ligando os fusíveis...
Gosto de ver e observar - com a vivacidade de um voyeur - os despertares que vão chegando ao quiosque das bombas...

Como aquele ali, o do BM... o de fato de treino e sandálias.
Chegou à area de serviço, parou a "bomba" - bem mais apelativa que ele todo junto - no local de abastecimento, olhou com desprezo para a mangueira e entrou na área de atendimento.
Com um ar desportivo - tipo empresarial made "in Ribeira dos Milagres" - olhou para o expositor de revistas e jornais com aquele ar de " deixa cá o que é que estes gajos dizem!..."
Retirou um matutino, depois de ter ensaiado a recolha de duas revistas, e borrifou-se, com sobranceria, para o letreiro que "solicitava" a restrição à leitura e manuseamento de jornais e revistas... sem a óbvia compra!

Reconheci-lhe o perfil e a fisionomia: é dono de uma "cadeia" de estabelecimentos de suposta restauração e de "bolinhos" aqui de Leiria... É mais um dono do mundo!

Não vem na "Forbes"... este é o tipo de gente que, normalmente, sai naquelas edições especiais das Finanças e nos editais dos Tribunais. A "Forbes", por enquanto, ainda não o descobriu... Mas já lhe olhou para o BM.

Recordo-me dele ter dado uma entrevista - provavelmente paga - para um jornal regional onde dizia, entre outras bacoradas, que "as pessoas não queriam trabalhar" e o mundo empresarial - onde ele, atrevida e abusivamente, se incluía - estava à mercê desta "gente"...

Uma entrevista edificante... Principalmente quando me fui apercebendo que a "gente que não queria trabalhar" eram estudantes imberbes que transformavam o servir à mesa num arriscado exercício de equilíbrios e acrobacias... Tudo a troco de uns míseros 400 euros, ou nem isso.

Eles poderiam não querer trabalhar... Mas ele, seguramente, também não queria pagar. E para servir clientes em Leiria, qualquer coisa serve... Muito respeitador.

Mas voltando à "encomenda", ali estava ele a dirigir-se ao balcão e com voz "trafulha" e autoritária - sem direito a bom dia - pediu tabaco, um galão e uma merenda de chouriço.
Pagar o jornal... nada!

Arrumou a barriga na mesa contígua à minha, abriu o jornal, e atacou o pão com chouriço, regando-o sofregamente com um gole de galão. Ainda mastigava o chouriço e já o dedo malandro se encaminhava para a língua - que desfraldou - para o molhar e lhe dar aderência.

Objectivo: molhar o canto da primeira página e passar à seguinte.
Uma demora curta na 2ª página e nova viagem do dedinho empresarial ao imenso lençol da língua, na química de cuspo e chouriço que cria aderências que nem a UHU se atreve a desafiar.
Às páginas tantas, e cansado das elevações do braço, passou a olhar de soslaio o dedo e com a precisão de um "sniper", chuviscava-o de longe para que cumprisse a sua função: virar outra página.

E aquilo foi uma boa meia hora de "copy" "paste" alucinante. Era um rodízio de sabores regionais com cariz informativo.
Prolongou-se aquela prestação empresarial num folhear alegre e húmido, numa viagem ao tenebroso mundo das notícias à borla, temperada aqui e ali com aqueles sabores que só um galão e um pão com chouriço conseguem dar...

Por fim, bem informado e de barriga cheia, num gesto de terna boa vontade, amanhou o jornal, batendo-o vigorosamente nas migalhas do pão e no resto do acúcar que foi semeando à sua passagem, dirigiu-se ao expositor, com ligeireza nas sandálias, e ali abandonou o matutino.

Ali ficou o matutino à mão de semear, com odores e humidades que só lhe acrescentavam mais-valias, à espera que alguém decente o comprasse, finalmente, e partilhasse os restos de chouriço e cuspo com "pedrigree" empresarial.

Com a mesma sobranceria com que entrou, saiu.
Dirigiu-se ao BM, deixou finalmente o espaço livre para quem quisesse abastecer, e fez-se à cidade.

Saí para a rua e abandonei-me ao domingo pelas ruas mas sempre atento ao dobrar das esquinas, receando que um "sniper" me tirasse a mirada e me humedecesse o dia... se calhar, e com algum azar, com restos de baraço do chouriço.
©J.Tereso
imagem:www.darcman.com

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