terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Por um naco de eternidade...





A manhã nasceu de soslaio... cheia de dúvidas.
Borrada, de má vontade, a cinzentos e a prometer chuva.
Como se o acto de nascer fosse já uma contrariedade…
As ruas, ainda desertas àquela hora da manhã, deixavam perceber o sábado.

E eu, que gosto destes sábados de preguiça... percorri, milimétrica e friamente, o pouco tempo e o pouco espaço que me separava de mais um dia de piquete...
Com o passo estudado e lento… como se pudesse adiar as oito e meia.


Uma ventania, ainda frescota e atrevida, lambia as ruas - para gáudio do arvoredo, papéis velhos e restos de jornais que, inebriados pela irreverência própria do que é esquecido, ensaiavam estranhos bailados na calçada e, às vezes, até no ar.
Incomodado mas aconchegado no blusão, agradecia – sem grande convicção – aquele ventinho bom que me agredia a cara e me purgava do hepático-esquecimento de mais uma noite de sexta feira...
Malditas sextas… maldito fígado.
A cerveja anda estragada... (reconciliava-me eu - diga-se, sem grande sucesso, perante os ouvidos surdos da vesícula e da figadeira).
Nem sempre será assim, concluí... agora já mais convicto e depositando todas as minhas expectativas na regeneração da cerveja.
Sim… porque o fígado recusava-se a colaborar.

Olhei para o outro lado da rua e com o passo mais determinado preparava-me para atravessar para o outro lado da alameda: não seguindo pela calçada, preferindo vandalizar um recorte de relva, também ela vítima de todos quantos acreditam que a recta é o caminho mais curto entre dois pontos...
Por momentos, parecendo temer alguma ausência, relembrei o que precisava de fazer nos cinco minutos que me separavam do serviço: atravessar a rua, entrar na pastelaria, dar os bons dias ao António – sempre em mangas de camisa, e o frio que se fosse embora, (que um homem da serra é mesmo assim!.. bolas.) – engolir a bica e demorar-me nalgum bolo, pagar, dar os bons dias, um “até já” e, já em desespero e esforço, guardar o último minuto para a compra do Expresso e - ala que se faz tarde! - serviço com ele...
Preparava-me para abandonar a minha margem e fazer-me à relva quando, lá do fundo da rua, ganhou forma, muito depressa, um borrão encarnado: um “chasso” que, pelo barulho que fazia e pelos “arrotos” que lhe saíam do escape, poucas mais vezes me toldaria o passo e a vontade.
O bolo, a bica e o Expresso bem podiam esperar e dar passagem àquela “lata” vaidosa que tão estrondosamente agonizava e anunciava a sua existência...
O mesmo não pensou o companheiro que, solenemente e sem alarido, se abeirou da berma do passeio...


(Por mais anos que viva, não mais vou esquecê-lo…)


Era castanho: de um castanho revolto e sujo, com “madeixas e nuances” de tom mais claro e a deixar perceber os gastos do tempo e da intempérie. Aqui e ali, naquele corpo magro e hisurto, percebiam-se, cicatrizadas, estórias de lutas territoriais e de outras teimosias - ou nem isso - muitas “brancas” no fato coçado, como se dormisse mal e sempre para o mesmo lado. A cauda e as orelhas, já sem o vigor de outros tempos, caíam-lhe pelo corpo como se há muito quisessem sair dali e aguardassem um outono. Os olhos... nos olhos envergonhados, escuros e longínquos não havia nada: só ausências. E a suportar todo aquele peso, toda aquela história de vida, quedavam-se quatro “estacas” trémulas, gastas e impelidas por um alento que não podia ser físico...
Não podia...


Trocámos um fortuito olhar... (percebeu-se observado) alternado.
Um olhar cúmplice... mas sem cedências.
Como se há muito fossemos parceiros de margem… sem vistos nem credenciais.
Como se houvesse uma inevitabilidade metafísica na nossa rota…

Intimidado pelo ronco do chasso, permaneci quieto e perfilado como se de uma parada militar se tratasse mas o meu companheiro… alheado de cerimónias ou protocolos e ávido de um tempo que não queria conceder, fez-se à estrada de olhos fixos no longe e na margem verde e fofa que lhe dourava o outro lado...
Crente na fatalidade das coisas e na irreversibilidade trágica dos destinos, tentei, em vão, chamá-lo de volta...
Como é que se chama alguém de quem não se sabe o nome?
Ocorreu-me um “Bobi”, um “Farrusco” mas temi ofendê-lo... em ambos.
Como é que se trava o tempo? … e as coisas?


Porque somos sempre tão frágeis, tão impotentes, tão espectadores atentos, vigilantes… mas egoisticamente inúteis.

A lata encarnada, ainda que gaguejante, avançou implacável e barulhenta sobre aquele lazarento borrão castanho…
Num último momento, o meu companheiro de margem levantou a cabeça, olhou o “chasso” que se aprontava para lhe alisar o pêlo hisurto e tempestuoso, e com a dignidade de uma vida, simulou um balanço e flanqueou a roda com a serenidade dos que, com a fatalidade espelhada nos olhos (há muito, secos), vão flanqueando o destino.

E ei-lo do lado de lá… de costas para mim, para a minha margem, para o destino… para o tempo e, sobretudo, para a lata.


O “chasso” passou: imponentemente velho, porco, barulhento e insensível.


Do outro lado, o meu companheiro parou por momentos para alongar o olhar para o “chasso” e, sem comentários, sem um gesto, sem um olhar para o céu, fez-se à relva e deixou que o corpo tombasse no fofo verde e húmido.
Passei por ele... e a mesma cumplicidade na troca tímida de olhares.
Deitara-se e, durante alguns momentos, ofegante, deixou que a língua embandeirasse a boca e colorisse a relva, como se fosse uma imensa colcha a emoldurar a janela de uma qualquer aldeia em dia de festa.


Atravessei a alameda, pelo caminho mais curto, e por um ou dois momentos, voltei-me para trás: para o olhar, para o perceber, para o sentir, para me identificar…
Lá estava ele: deitado, ainda ofegante mas deleitado com qualquer coisa que descobrira na relva e que provavelmente lhe devolvera a… alegria, o tempo, o… não sei dizer.

Entrei no café, traguei a bica, demorei-me no bolo – quente, como só o António sabia fazer – e com um até “até já” fiz-me ao quiosque.
Comprei o “Expresso” e, fazendo o caminho inverso, demorei-me nas “gordas”...
Afinal, tinha o tempo todo para ler o resto...

O meu parceiro de margem lá estava... ocupado.
Cruzei-me com ele e, finalmente, percebi aquela azáfama: um naco de pão com memórias de manteiga ou qualquer coisa do género... tão pouco, afinal...
Arranjei coragem para parar... descarado.
Olhou-me… e agora olhei-o também, sem alternâncias.
Nos olhos… na húmida lonjura de ambos.
Na furtiva e salgada aceitação das diferenças e das solidariedades.
Por momentos senti vergonha do aconchego da bica, do bolo, do blusão, das cautelas, da minha condição... de tudo!
Pedem-se, ou aceitam-se, desculpas por isto ou por aquilo…

Agora, por tudo?!...

Certamente incomodado com os meus incómodos, levantou-se, sacudiu o mesmo pêlo, as mesmas misérias, a mesma magra figura e, com a dignidade com que flanqueou a roda do carro, me flanqueou a mim...
E foi-se... alameda acima.
Sem mais concessões de tempo ...
Para que o tempo não me incomodasse.
Concedeu-me um último olhar, já lá mais à frente:
parou e, com aquele mesmo olhar longínquo e cúmplice, lambeu-me a figura, de alto a baixo, e foi-se à vida... à luta... com o mesmo fato castanho (revolto, coçado e hisurto), com a mesma trágica dignidade: parecendo carregar, num alento que não podia ser físico, um estranho fardo... no flanquear das rodas, dos chassos, dos destinos, das vivências, das... solidariedades contidas.


Cheguei tarde ao piquete... são oito e quarenta!


Nunca mais nos cruzámos.
Fiquei sem saber o seu nome... ficou-me um naco de eternidade.
Mas, nestas coisas, que importa o nome.
Ficam as margens, as memórias, o sal das ausências e uma tremenda vontade de num dia, numa manhã que acorde de carranca, borrada a tons de cinzento, algures eu me volte a encontrar...
Mesmo que não me possas ajudar…
Mesmo que o teu longe flanqueie a lonjura do meu.


E o piquete que se… adie!...


©J.Tereso

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